Archive for maio 2011

Casa Viva

Eu não sei viver sozinha. Há momentos em que preciso ficar sozinha, porém, tendo a certeza de que não estou só. Entende?
Agora você dorme ao meu lado sem se preocupar com a chuva que cai lá fora. "É domingo. Podemos passar o dia na cama fazendo amor." Você disse isso ontem à noite quando chegou. Mas agora você dorme, sem se preocupar se terá roupas limpas para trabalhar durante a semana.
Deslizo meus dedos bem de leve por tuas costas, escrevo meu nome nela e sinto que és meu desse jeito. Observo tuas costas subindo e descendo conforme tua respiração. Tento lembrar do dia em que nos conhecemos. Você usava camisa vermelha com uma estampa qualquer, jeans e coturnos. Cabelos negros, olhos negros e uma barba por fazer. Não lembro que roupa eu usava nesse dia, mas lembro até que você ouvia uma música do The Doors. Esperamos o ônibus juntos. Ninguém falou nada. Eu não conseguia tirar os olhos de você sem nem ao menos olhar. Consegue imaginar?
Não. Esse foi o dia em que eu te conheci. Só nos conhecemos quatro anos depois desse encontro em que acompanhei tua presença até o ônibus virar a esquina. Eu nunca me preocupei em dizer-te que já o conhecia quando nossos amigos nos apresentaram. Por alguns momentos, em nossos primeiros momentos juntos, cheguei a ver nos teus olhos que você se lembrava de nosso primeiro encontro. Mas depois sumiu dos seus olhos e esse passou a ser um momento só meu. Assim como sumiu dos teus olhos aquela veneração que eu sentia que tu tinhas por mim. Hoje só sobraram os desejos e a acomodação. Eles sempre ficam entre nós.
Brinco com teus cabelos, você detesta quando faço isso. Vira para o outro lado. Bem longe de mim. Há quase dez anos você desistiu de escrever. Adorava fazer críticas sobre os últimos filmes lançados. Eu era sua única leitora. "Ninguém lê o que escrevo, para quê escrever então?", você disse isso enquanto eu comentava sua crítica sobre algum filme de guerra que não lembro mais o nome. Eu era o seu Ninguém. Aproximo-me de ti, teu braço envolve minha cintura, te aconchego entre meus seios, você os beija e me chama de "amor". Era a única hora do dia em que você não me chamava pelo nome.
Começo a cantarolar baixinho: "I can give it up, for someone else's touch, because I care so much" e lembro uma vez, quando estava na rua de nosso apartamento te vi fumando um dos meus cigarros na pequena varandinha escondido atrás de alguns pensamentos. Você não suportava que eu fumasse. Então, ao entrar em casa, você vem até mim e me abraça, sem lágrima alguma, com cheiro de cigarro, sem falar nada. Sua barba arranha meu rosto e você não me deixa olhar em teus olhos. Dias depois descubro que seus pais morreram em um acidente, em um acidente em que você estava envolvido.
Olho para as paredes de nosso quarto. Riscadas com números, declarações de amor, declarações de raiva, desenhos dos filhos de nossos amigos ou dos próprios amigos. Tínhamos uma casa viva.
- Você está pensando alto de novo, amor. - Você fala e sinto seu hálito quente no meu pescoço. Tento disfarçar o susto de mais uma vez você ter escutado meus pensamentos.
- Desculpe, volte a dormir. Está cedo e chovendo.
- Nós temos uma casa viva.
- O que disse?
- Você disse que tínhamos uma casa viva. Eu te digo que temos.
Você voltou a dormir, eu voltei a desenhar nas suas costas. "Nós temos uma casa viva."

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Complexo


- oi
- oi
- Há muito tempo aqui?
- Um pouco.
- Esperando alguém?
- Talvez. E você?
- Só estava andando.
- Sem rumo?
- É, sem rumo.
- Acho que ainda tem cerveja nessa caixinha. Pode se servir se quiser.
- Eu não bebo, obrigado.
- Que bom, sobra mais pra mim.
- Faz tempo que não te vejo pela universidade. O que tem feito?
- Indo a universidade.
- Usando roupas de camuflagem?
- Mais ou menos isso.
- Tá tudo bem?
- Essa é uma pergunta que não posso te responder. Ia estender esse diálogo muito mais do que ele merece pra existir.
- Tudo bem, não vou insistir.
- Eu sabia que você viria até aqui. Só fiquei em dúvida se você iria sentar e conversar. Você nunca senta pra conversar.
- Não compreendo você. Uma hora se aproxima e depois me trata como um conhecido qualquer. Como vou saber o que você quer?
- Você nunca vai saber, Jota. E olha que engraçado. Eu já tive essa conversa antes. Aposto como daqui a pouco você vai dizer que tentou ficar comigo, que tentou se aproximar de mim.
- Na verdade, eu não tentei. Você sumiu.
- Não sumi. E aliás, onde estão seus óculos?
- Estou usando lentes.
- Prefiro você de óculos.
- Porque parou de freqüentar o bar?
- Uma hora a gente enjoa de la, e a cerveja ficou cara.
- A ficha da sinuca também.
- Que pena, a única coisa em que você se divertia.
- Por que está brava comigo?
- Não estou brava com você. Estou brava comigo.
- Complexo.
- Eu sei.
- Vai chover.
- Eu sei.
- Melhor eu ir indo.
- Concordo.
- Eu te amo.
- Complexo.
- Eu sei.

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Abajur

Cheguei na hora marcada.
Na verdade, cheguei algumas horas antes. Estava nervosa. Eu sabia o que queria, mas estava nervosa. Na verdade, eu não sabia porque estava ali, não sabia porque tinha ligado pra ela e nem marcado aquele jantar. Só sabia que queria estar ali.
Subi até o apartamento na hora marcada. O peso das sacolas mantinha-me firme, sem ficar pensando se deveria continuar ou não. Do corredor eu escutava aviões cumprindo suas manobras diárias lá fora. Estava frio ali. Desejei que ela tivesse um aquecedor no apartamento. Desejei que ela não estranhasse todo o meu empenho em estar com ela. Bati três vezes na porta, verifiquei as sacolas: vinho, macarrão, molho de tomate, queijo, bacon e chocolates. Sempre achei que vinho, macarrão e chocolates eram um bom jeito de se firmar uma amizade.
Ela abriu a porta. Usava jeans, uma camiseta em listras horizontais em preto e branco e sapatilhas. Seus cabelos estavam curtos como na última foto que me mostrara. Ela estava linda. Ficamos um tempo paradas, sem desviar o olhar. Até que o peso das sacolas me trouxe de volta. Entrei no pequeno apartamento abarrotado de livros e quadros por todos os lados. Eu só tinha estado uma vez ali e adorava o lugar.
Fomos pra cozinha conversando sobre meu trajeto até chegar ali, sobre o clima, sobre a faculdade. Éramos assim: um assunto puxava o outro. Anna era assim. Pelo menos quando estava com vontade de conversar, pois se não estivesse, estaríamos as duas jogadas no sofá lendo algum livro. E eu não iria me importar nem um pouco. Porque até o silêncio com ela era algo bom de se compartilhar.
Ela fez o macarrão delicioso. Depois fomos para o sofá com o vinho. Ela queria mostrar-me os últimos textos que havia escrito. Eu simplesmente adorava o que Anna escrevia e ela nunca acreditava quando eu dizia isso. Era engraçado. Pela primeira vez eu gostava de algo que algum amigo escrevia, eu falava que gostava e ela achava que eu estava apenas sendo educada.
Chegamos na metade da garrafa. Os textos já tinham acabado, só tínhamos a luz do abajur iluminando a sala. Estava um clima bom. Encostei minha cabeça eu seu ombro tentando escolher algumas palavras. Como dizer? O que dizer? E afinal, era necessário dizer? Então ela segurou minha mão, começou a fazer carinho. Eu correspondia. Eu sabia o que estava fazendo. Sabia o que queria.
- Por que você está aqui, Samy? - Ela perguntou virando seu rosto pra mim. Nossos narizes roçaram um no outro.
- Por você.
Respondi acariciando seus lábios. Sem hesitar em nenhum momento. Ela continuava me olhando e eu olhava apenas para sua boca.
Meu medo. Meu medo sempre foi correr atrás do que eu queria e ao estar tão perto, ela fugir. E ali ficamos, sob a luz do abajur.

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Adelaide

Fim do expediente.
Adelaide organiza suas coisas escutando os colegas de trabalho comentarem sobre as festas que ocorrerão no fim de semana. Sai do trabalho direto para o mercado mais próximo. Compra duas garrafas de vinho e três pizzas congeladas. Comenta com o caixa que vai receber os amigos em casa.
Pega o ônibus, um operário aperta sua bunda, segue seu caminho. Chega em casa, coloca uma pizza pra esquentar, liga o computador e abre uma garrafa de vinho.
- Que comece a festa!
Ela diz baixando mais um podcast.

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