Archive for 2009

Ninguém Vê

Sou os brinquedos que brinquei, as gírias que usei, os segredos que guardei, aquele amor atordoado que vivi, sou o que lembro. Sou a saudade que sinto do tempo em que tinha uma mãe só pra mim, a infância que recordo, a dor de não ter dado certo, de não ter falado na hora, a emoção de um trecho de livro, a cena da rua que me arrancou lágrimas, sou o que choro. Sou o abraço inesperado, a força dada para o amigo que precisa, a sensibilidade que grita, o carinho que permuta, os pedaços que junta, sou o orgasmo, a gargalhada, o beijo, sou o que desnudo. Sou a raiva de não ter alcançado, a impotência de não conseguir mudar, o desapontamento com o governo, o ódio que tudo isso dá. Sou o que ninguém vê.

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Conversa imaginária com L. Moreira

Já é tarde da noite, estamos as duas na varanda, olhando o céu estrelado, bebendo alguma coisa alcoólica ao som de alguma boa musica e grilos desocupados. Como chegamos as duas naquela varanda não faço idéia. Talvez estávamos lá há tanto tempo que não percebemos. E talvez só eu tenha notado isso.
- Odeio o canto dos grilos. Declarei por fim quebrando o angustiante silencio que nos cercava. Realmente não sei manter-me calada.
L. Moreira bebericava olhando para o céu. De fato a noite estava bela. Jamais achei que o silencio fosse uma tortura, pelo menos nunca achei em meus momentos de reclusão interior. Mas o silencio dela me agoniava, levava-me a falar besteiras a fim de chamar qualquer atenção. Às vezes tinha impressão de que nem minha voz saia mais. Uma nuvem tapou nossa visão.
- O que foi Carol?
Olhei pra ela interrogativa. Eu estava em silencio? L. Moreira olhava-me com simplicidade ou cumplicidade. Ou as duas coisas. Respondi por fim:
- Não sei, achei que bêbadas falavam pelos cotovelos.
Ela soltou um riso pelo nariz. Sempre tive curiosidade de saber como era a L. Moreira soltando um riso pelo nariz.
- Você está calada. Ela falou tomando mais um gole de algo que eu já desconfiava estar quente só pelo tempo em que estávamos ali.
É eu estava bêbada. Jurava ter falado asneiras em busca de atenção e no final elas nem saíram de minha boca.
- Se não quer que eu fique aqui, é só falar. Eu vou entender. L. Moreira falou interrompendo meus pensamentos já embaralhados.
- Não é você, pare de drama. Acho que estou bêbada.
- Haha! Bêbada depois de três taças?
- É, eu jurava estar falando besteiras sozinha. Até os grilos miseráveis calaram.
- Grilos? Que grilos?
- Os que estavam cantando, ué.
- Ta bom, Carol. Acho que já chega de bebida por hoje.
- É, você tem razão. Minha úlcera vai atacar amanhã.
- Úlcera, Carol? Pare de drama você. Depois que leu Nelson Rodrigues qualquer cólica abdominal torna-se úlcera. Vai querer dar papinha às três da manhã pra ela também?
Olhei no relógio e exclamei:
- Oh céus! Já passam das quatro! Perdi a hora da papinha!
Nós duas rimos bastante. Os grilos voltaram a cantarolar sua cantiga de amor, as nuvens dispersaram-se, estava mais frio e as bebidas quentes. Todo um conjunto perfeito de amizade.
- Que bom que tenho você aqui. Declarei em meus últimos impulsos inconscientes.
- Eu que o diga, Carol. Eu que o diga.
- Nossos corpos nos chamam. Falei com a voz embargada de tristeza. Era tão bom estar ali.
- E temos outra opção?
- Acho que não. Até a próxima e procure manter nossa varanda limpa.
Ela riu e estendeu a mão. Alguns raios de sol já teimavam em sair.
- Vou fazer o que posso.
- Você pode tudo Mulher Maravilha.
Segurei sua mão e partimos sorrindo. De volta aos nossos corpos mortais. Ela voltou para seu corpo em Minas e eu para minha carcaça em Roraima. Acordei com a luz e o som do despertador que coincidentemente parece com o canto dos grilos. E então a lembrança do sonho veio à tona. Seria apenas minha imaginação? Ou uma visão, premonição, qualquer coisa do tipo que o futuro nos reserva?
Não sei, não sei. Só sei que a L. Moreira parece não ter conseguido ligar pra mim na noite passada.

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Fugitivos

- E a verdade é que aos poucos as palavras vão fugindo de nós.
Ela disse de cabeça baixa, riscando com o dedo a areia da praia recém banhada pelos novos raios de sol que a iluminavam.
- Não seríamos nós os fugitivos, Julia?
Henrique indagou olhando para ela. O sol lhe dava uma aparência de natureza pura, quase que angelical. Mas só ele sabia do que aquela mulher era capaz.
- Depende do ponto de vista.
- Dê-me um exemplo então. Insistiu ele a inclinar o corpo na direção dela.
Julia respirou, como se pudesse sugar todo o ar. Fechou os olhos e deixou a luz do sol banhar sua face.
Aquele era um novo dia. Para ela, sua vida estava começando ali. Seu passado já não importava mais. Deu por conta que ainda estava na praia e por fim respondeu a curiosidade do irmão:
- Bem sabes tu, que tudo na vida é relativo.
- Sim, compreendo bem esta posição na vida. Continue.
- Quando conhecemos uma pessoa nova, e ela nos chama atenção. De pronto oferecemos nossa atenção. As conversas vêm e vão sempre longas e desejosas de mais e mais. Com o tempo, a frequência vai diminuindo. Não por falta de confiança, mas pelo excesso da mesma. Você passa a conhecer tudo sobre a outra pessoa, que já não se faz mais necessário o diálogo.
- Mas isso não faz das palavras fugitivas, Julia. Elas apenas foram acomodadas.
- Nesse exemplo sim, Henrique. Mas o homem é feito de atos banais e por vezes, tornam-se inexplicáveis. Por isso digo que as palavras fogem de nós.
- Concordo com tudo o que dissestes, mas para mim também nós cabe o papel de fugitivos.
- Ao homem cabe todo o papel. Não sabes tu que melhor ator não há, do que aquele que ainda está vivo? – Ela olhou para ele com a face interrogativa – E aonde nos cabe o papel de fugitivos, Henrique?
- Quando fugimos da verdade.
- E o que sabes tu sobre a verdade?
- Bem sei que desde o nascimento fui privado dela. Pra mim, verdade é tudo o que nunca tive.
- Não te cubras com escárnio, irmão. Este papel foi reservado para mim. E eu o privo deste sacrifício.
- Então faremos um trato, eu me privo do escárnio e tu de ser carpideira!
Eles riram jogando as frontes para trás. Julia levantou-se e estendeu a mão a seu irmão:
- Feito então. Agora te apressa o passo. Temos que cuidar do corpo antes que comece o mal-cheiro.
- Tu o tratas como se ele não tivesse feito nada de mal a ti.
- E como queres que eu trate o corpo de um infeliz? Já tenho minha liberdade. E dela não abrirei mão jamais. Não tenho passado. Nasci hoje e estou aprendendo a andar. A andar não! A voar!
Julia saiu correndo pela praia, dando pulos e rindo rumo ao carro que estava no estacionamento.
- Julia me surpreende. É coberta de escárnio e sarcasmos, e ainda tem a alma livre depois de ceifar uma.

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Os Delatores

Duas mesas, uma em frente à outra. Era uma sala pequena, apenas uma janela, pela qual nem se dar pra sonhar. Era um fim de tarde. Fim de expediente. Faltava apenas um cliente ser atendido. O clima estava seco. O silêncio e a desconfiança eram os chefes ali.

A campainha soou. Nenhum olhar trocado.

E então, a sala pareceu insuficiente para aquelas três pessoas. Os diálogos eram rápidos e formais. Nenhum olhar trocado.

― A senhora pode me ver a cópia do contrato?

― O senhor vai querer apenas a cópia?

Eram três pessoas, e apenas uma tentava captar algo além das falas submersas em um mundo cinza. Duas mulheres, mãe e filha – chefe e subordinada -, e um homem, o cliente.

A jovem observava tudo atentamente, com tal interesse que pode ser comparado a uma devoção a um deus. Mas lhe faltava algo.

Nenhum olhar trocado.

Aconteceu muito rápido. Todas as informações conferiam. Faltava apenas a confirmação.

E ocorreu, como qualquer outra coisa extraordinária, entre um piscar de olhos.

Eles se olharam.

Primeiro os adultos, depois mãe e filha, e a seguir, o homem e a jovem.

Tudo se confirmou. Nenhum olhar trocado. Nenhuma palavra foi preciso ser dita. Fim. Acabou. A vida deles continuou a mesma. O silencio e a desconfiança continuam sendo os chefes. E o segredo da traição jamais será revelado.

Porem, os olhos jamais deixaram de ser os delatores.

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Papel-pape-pap-pa-p

Sonhos, o futuro em algumas folhas de papel. E tchum!
Mais folhas de papel e o seu nome na lista. A alegria é contagiante. Mesmo que lá no fundo a indecisão ainda esteja lhe cutucando com um graveto no estomago.
Mais papéis para a matricula. Correria atrás de outros papeis e enfim, o sonho já não é mais sonho. E já tenho que pensar em outro para por no lugar deste. Talvez seja como Pessoa diz: “Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda chuva contra um raio.”
Mas eles são necessários. Sem eles não posso manter-me sã. E sem eles não posso me diferenciar.
Dependendo do modo como vejo, a vida pode ser simples. Mas espere um minuto! Eu ainda não me tornei um adulto sem sonhos e dizer que a vida é assim e acabou-se.
Minha mente turbula-se com o novo fato. Mais responsabilidades? Sim, talvez infelizmente sim se for encarar por este lado. Se por outro ângulo eu diria que seriam mais desafios para se derrubar. O melhor ponto de vista talvez seja o ultimo.
Os dias passam e novas palavras são repetidas dia após dia. Remanescente, hortifrutigrangeiros, futuro. Nossa, o futuro nunca esteve tão presente a cada 10 palavras do professor de gestão. Ele é chegado nos papéis, mas parece ter uma obcessão por reciclados.
A correria continua, os prazos são os mesmos. O corpo envelhece, e a mente evoluiu. Preciso de um lugar para descançar.

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