Archive for maio 2010

Contos Diários - 1 -


Apitos, balbúrdia, reclamações de direito, esquecimento dos deveres, bate-bate de portas, tac-tac da maquina datilográfica, conversas mudas aos corredores. O ambiente de uma greve sem propósito e cheia de afãs.
Tudo aquilo parecia familiar para Fernando. Estava velho, sentia-se um completo inválido sobrevivendo à mercê do governo. Mas nada disto ele significava para Gonçalo, seu neto de sete anos.
A cidade em que moravam estava plenamente parada, alguns setores – talvez os mais importantes – estavam em greve. Lutavam por melhores condições de trabalho, menor carga horária, férias e mais férias. Para os prejudicados, aquilo era a nova moda de como ser um autentico vagabundo.
Ignorantes. Resmungava Fernando ao ouvir o noticiário, a opinião de seus filhos e conversas de desconhecidos.
Os homens já tiveram objetivos, propósitos, temas e honras encravados no peito. Hoje mal se sabe o que é o próprio respeito. Hoje Fernando era apenas o vovô Nando. O qual já fora Fernandinho, Nandico, Fernandão e unicamente chamado por sua falecida esposa de Nandinho.
Um eterno boêmio, apaixonado pela vida e pelas oportunidades que esta lhe proporcionava. Líder de movimentos estudantis contra o governo. O futuro da juventude. Defensor de uma melhor educação. Hoje não passava de um contador de histórias para o neto. Para ele o tempo era o único inimigo invencível. Mas só se deu conta disso quando sua esposa morreu. A cada minuto sentia sua falta e aborrecia-se ao se dar conta disso.
“E todos os dias ele roubava uma flor do jardim do vizinho para dar a ela.”
O ‘ele’ era Fernando. O ‘ela’ era uma das várias namoradas que teve. Gonçalo ria, se divertia, idolatrava e interpretava os vários Fernandos e suas facetas. E para Fernando esta era uma maneira de imortalizar-se sem escrever uma palavra.

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Sombras de Belle Meade




Autoria de Ágda Santos e Juliana Cimeno do blog .do obvio ao avesso.



Já era noite quando despertara com uma forte dor na cabeça. Os sentidos bagunçados não lhe permitiam localizar-se. A respiração descompassada nada lhe ajudava. A todo custo pôs os pés para fora da cama. A dor então foi amenizando, a respiração voltando ao normal. Tateou em busca de seu criado-mudo onde costumeiramente deixava seus óculos.
Encontrou o copo com água, maço de cigarros, o porta-retrato que sua filha lhe dera, um jornal amassado e enfim seus óculos. Colocou-os e caminhou até um pequeno banheiro que ficava logo à frente. Algumas baratas se escondiam à medida que ele avançava até a pia encardida.
Ligou a torneira e esperou que a água enferrujada acabasse de sair, em seguida molhou a nuca e sentiu a velha cicatriz de 1945.
Voltou para a cama, mas sabia que não voltaria a dormir. Era um ritual até o amanhecer. Agora só restava continuar.

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Nenhuma luz fora acesa no local, mas enquanto observava de fora o segundo andar da velha mansão Belle Meade, ela sabia exatamente em que coordenada ele se encontrava, e o motivo que o fizera sair da cama.
Tinha as mãos nos bolsos fundos e o pescoço encolhido junto à gola do casaco pesado e preto. O fato não lhe chamava a atenção, mas seus cabelos, normalmente alinhados, brincavam no ritmo do vento pelos arredores de sua cabeça.
Seus olhos, ouvidos e nariz mantinham-se atentos. Sua mente, porém, vagava até a dele.
Era uma noite como qualquer outra. Mas se pudesse, a faria diferente.

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Voltou para perto da cama, pegou o velho jornal e vestiu um roupão surrado. Caminhou até uma pequena cozinha, serviu-se de
café amargo, há duas semanas que não sabia o que era doce. Há 65 anos não sabia o que era ter uma vida doce. Abriu mais uma vez o jornal para ver a imagem da mulher que transfigurara sua vida. Mais uma vez passou a mão na cicatriz. Recortou a foto do jornal e a colou numa parede proxima junto com centenas de outras fotos. Todas acompanhando o envelhecimento e enriquecimento de uma única mulher.

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Seu corpo permaneceu tão intacto quanto sua sanidade permitira. Se um fator não dependesse do outro, não estaria naquele lugar, plantada em uma única posição durante longas horas. Não percebeu quando o frio começara a machucar a pele de seu rosto, criando um choque entre a sua palidez e a cor avermelhada do sangue que ainda corria em suas veias.
Depois de tantos anos, ficaria levemente surpresa se tivesse conhecimento desse seu reflexo. Porém, a única sensação que permanecia em sua tela de consciência era a necessidade.
Movida por ela, andou em direção à casa.
Era sua eternidade, mesmo que só 65 anos tivessem se passado.

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Alex estava cansado pelo rumo que sua vida tomara, não suportava mais o próprio ar que respirava. Olhou pela janela embaçada e viu uma luz na mansão acessa. Como em todas as madrugadas, era ela. Um meio sorriso tomou conta de seu rosto. Toda a dor poderia cessar se ele decidisse pegar o carro e atravessar a plantação de girassóis. Tudo poderia mudar em apenas algumas horas. E então a luz distante apagou-se. Seu semblante tornara a desanuviar-se. E com o cantar dos galos toda a dor escondia-se dentro do peito. Era chegada a hora.

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Era lei dos caçadores, nunca encurralar uma presa quando não se pode adentrar sua toca. Ela pode morrer de fome, mas não morrerá por suas mãos.
Esse fora seu primeiro erro.
O segundo, aparentemente, fora o instinto humano.
Nos poucos segundos gastos na aproximação de seu antigo lar, despiu-se de seus próprios princípios. Era um animal faminto, instigado pelo cheiro de carne fresca e ensaguentada.
Lillian abriu as portas, subiu as escadas, passou por suas fotos - que formavam uma linha do tempo pela sua sobrevida. E, finalmente, encarara sua tão sonhada presa.

- É hora, meu filho.

...E devorou-lhe o coração.

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Contos Diários - 3 -




3.

Sua vida estava acabada. Nenhuma esperança nem sonho lhe restam mais. Na verdade Bernardo já nascera sem sonhos. Crescera sem esperança e o tal de amor nunca lhe foi concedido. Vivia entre os prédios cinza e os fantoches de sua cidade.
Nunca confiou em ninguém e muito menos amou. Seu coração vivia vazio e ele ocupava as horas devorando as magníficas histórias de seus antepassados.
A vida sempre foi cinza. Jamais será uma coisa só. Ele jamais se decidirá sobre o amanhã e tudo vai se repetir. Ninguém é capaz de manter-se fiel a seus princípios. O homem sempre foi corrupto. Desde o Éden.
Pobre Adão desgraçado culpou sua amada Eva e esta culpou a endiabrada cobra. E a cobra culpou alguém? Pelo menos até onde sei, não.
E Bernardo sentia-se só como a cobra. Não tinha ninguém igual a ele. Nenhum fantoche lhe agradava por mais belo e quase perfeito que fosse. O peso dos erros humanos sobre seus ombros. Ele era o bem e o mal. Mas nunca conseguia o equilíbrio. Pois não há equilíbrio nessa vida. Não há. Duas coisas sempre estão lutando pelo domínio.

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Contos Diários - 2 -

2.

A ignorância humana oprime, liberta. Já cheguei a pensar que todas as palavras são ambíguas. Ainda não me decidi sobre elas, muito menos da ignorância.
Dizem que os ignorantes são os mais felizes. E com certeza estão certos os que dizem isso. Saber das coisas desvanece a alma, empobrece o espírito e por vezes mata.
Não sei dizer como, apenas sei que é irreversível. Também não sei se estou viva depois de tantas conclusões sem motivo e direção.
Ignorância poderia ser considerada arte, religião, filosofia de vida. Mas segui-la é mais difícil que realizar o próprio celibato.
Ignorância é a própria loucura da qual todos fogem.
Ignorância é a nossa imagem ao avesso traspassada por todas as verdades ocultas.
Talvez existam casos de insurreições onde o individuo tem momentos de vida, ora de morte. Momentos lúcidos de uma rara alegria que consegue furar a bolha de isolamento.

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