Esperança

Eu estava descansando quando ela reapareceu depois de anos. Silenciosa e desconfiada foi entrando, e eu estava perdida em pensamentos que não fui capaz de perceber sua presença. Sua gloriosa presença.

Deitada no chão do escritório aproveitando o silêncio da hora do almoço, eu jurava estar sozinha. Tudo era igual, calmo e monótono. Tudo era branco, preto, marrom e cinza. Tudo era o resultado da sabedoria humana. E ainda assim não era nada.

Não havia mais o tic-tac do relógio para me hipnotizar. Não havia ventilador no teto para prender minha visão. Não havia moscas zunindo e nem vendedores de pamonha para me trazer de volta a realidade irreal da vida. Era apenas eu, o horrível silêncio e ela, sorrateira e desconfiada vigiando-me.

Ainda não descobri porque ela veio até mim. Não estava perdida e muito menos minh’alma estava corrompida. Mas as coisas não acontecem para se ter uma explicação Ou acontecem? Pois se acontecem para se ter essa explicação, esqueceram de nos dar esse direito. Talvez só nos seja acessível à explicação plausível. Aquela cheia de dogmas e que segue apenas uma vertente, julgando esta ser a melhor para a compreensão fraca dos humanos.

Lembro-me da ultima vez que a tinha visto. Era o sitio de meus avós, um dia chuvoso e quieto. Eu queria brincar na chuva, mas não deixaram. Tranquei-me no quarto e fiquei vendo a chuva cair da janela. Estava distraída quando ela entrou pela janela, molhada e fraca. Tive medo de machucá-la e mesmo assim a peguei e coloquei na cama. Ela pulou, sacudiu-se e me fez rir. Começou a pular pelo quarto inteiro, parecia dar vida a tudo em que tocava. Parecia colorir o quarto com seu verde flamejante.

Aquela era minha ultima tarde no sitio, e graças a ela, fora a mais divertida. Depois disso parece que vivi um tempo inteiro dormindo, sem ações e pensamentos, muito menos sonhos ou talentos. Fui apenas vivendo sem notar que ela sempre esteve a minha espreita, guiando-me.

Espreguicei-me lentamente já pensando nas coisas que teria que fazer a seguir. Guardei minha almofada com estampas de elefantes e sentei na cadeira. Ainda de olhos fechados tentando aproveitar aquela paz, fiquei uns minutos quieta. Foi ai que ouvi o barulho de seu salto. Eu conhecia aquele barulho. Ele sempre esteve guardado na minha memória. Abri os olhos e lá estava ela em cima da pilha de arquivos que eu teria que arquivar. Meu sorriso abriu-se como não fazia há tempos. As engrenagens de meu rosto rangeram devido ao esforço de retornar ao esboço antigo de um sorriso que outrora tinha sido minha marca pessoal.

Não lembro quando parei de sorrir, não lembro os motivos para realizar o ato de isolar aquela menina que tinha brincado numa tarde chuvosa de verão com uma... uma...

Tinha esquecido seu nome! Agora além de lutar para formar um sorriso decente, teria que lembrar seu nome. Senti meu coração murchar novamente, querendo voltar rapidamente ao estado letárgico em que me achava. Mas não podia deixar isso ocorrer. Uma velha amiga aparecera para uma visita e eu não podia voltar ao ser que estava no chão.

Estendi minha mão para que ela saltasse.

Um longo momento de silêncio em busca da confiança nos infiltrou. Eu esperei seu movimento. Minha respiração era mínima para que não a assustasse. E pata por pata ela foi colocando na palma de minha mão. Aquela sensação de confiança, de entrega de vida era acalentadora.

Mas fazia tanto tempo que uma vida se entregava a mim que eu não sabia o que fazer. Fiquei parada observando-a. Suas longas antenas mexiam-se devagar, seus olhos enormes vasculhavam todo o escritório. Ela estranhava aquele lugar. Assim como eu estranhava todos os dias que pisava ali. Aquelas cores mortas nos faziam ficar vazias. E por um breve momento pedi-lhe para me levar dali.

Caminhei até a minúscula janela e a incentivei a ir. Não podia atrasar-me mais. Ao longe já se ouvia o som de trovoadas. Minha pequena amiga assustou-se e saltou para dentro, saltitando por todos os lados, em cima dos armários, do computador quebrado e inacreditavelmente estava devolvendo-me a vida.

This entry was posted in . Bookmark the permalink.

2 Responses to Esperança

  1. Ok, você consegue fazer de uma coisa tão simples um texto tão lindo.
    Ágda, quando eu crescer eu quero ser igual a você.

  2. Faby says:

    Lindo, lindo. Talvez eu deva ler novamente para conseguir ver além das palavras.