Dia Cinza*


Eu lembro, bem vagamente de umas conversas nossas. Aquelas pela varanda da tua casa, outras na volta do cinema, os telefonemas. Elas se misturam, perco a ordem e penso que essa demora em voltar a ver-te é que atrapalha. Os cafés já não são mais os mesmos e meu sorriso deve ter ficado junto ao teu. Ao meu favorito. O mais interessante é chegar em casa, o dia ainda estar cinza e a luz da secretária eletrônica a piscar. Fazia tanto tempo que ninguém deixava mensagem ali. Foi uma surpresa boa ouvir tua voz outra vez:

- E por falar em saudade, onde anda você? Onde andam seus olhos que a gente não vê?

Ouvi várias vezes. Tirei os sapatos, o casaco, fiz um café e a tua voz ecoava pelo apartamento antes sem vida. Eu já não sabia mais da tua rotina, e a vontade de ouvir mais da tua voz me impulsionava a ligar. Ainda resisti até a primeira caneca de café, enchi outra e liguei. Você parecia estar grudado ao telefone, tocou apenas uma vez. Era assim antigamente. E sendo como antigamente, não havia cumprimentos bobos, eu tagarelava até perder o ar e imaginava se você estaria rindo do outro lado do telefone:

- Eis que tu me surges saudosista. Assim me conquistas. E nem precisa me prometer ametistas ou ser um presidente golpista. Basta falar mais dos meus olhos, que jamais abandonaram os teus em busca do Acarinhador que se perdeu.

- Sou apenas o Acarinhador a vagar. Agora já não mais a procura de quem me dê o que tanto ofereço, mas apenas procurando sorrisos e companhia para, “quem sabe?”, um café. Ou até mesmo um passeio no parque. Ou, quem sabe, uma tentativa de escrever poesia, embora hoje eu creia que a poesia deva ser sentida e gravada na memória, não tanto no papel.

- Candidato-me a essa vaga que solicitas para um café, mas peço-te para que nunca termine, não enquanto houver pôr-do-sol pra banhar teu sorriso de canto que tanto me encanta.

- Fiquei sem resposta.

- Ah, meu caro. Se ficares sem resposta a prosa acaba.

- Farei uma prece pra que a prosa regresse e assim eu possa encontrar as respostas pra te trazer de volta. Que é pra acabar com esse negócio de viver longe de mim.

- Te sugiro imaginar um mundo, onde todas as preces mais puras são ouvidas e realizadas. Seria a tua uma delas? E por algum acaso, meu nome se encontraria no meio?

- Vou imaginar o mundo da Bossa Nova, afinal, ela é a maior prova de que o mundo ainda pode ser melhor e o samba é o som que nos guiará a esse lugar. Talvez eu seja ouvido. E se assim for, seu nome estará nela. E o seu sorriso virá em seguida.

- Meu sorriso anda perdido, ou contigo. Faz logo essa prece, ou esse samba. Que a vida há muito me esquece e cá estou na corda bamba.


*Uma prosa com meu amigo barbudo Marco, do blog TantoClaroTantoGris

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5 Responses to Dia Cinza*

  1. Daniel Lira says:

    Falando em saudade,
    desculpo-me então,
    por ter-me sumido de supetão,
    espero contudo que um dia ainda dê,
    dos nossos cafés e a sanidade reter
    minha musa querida do coração,
    minha filosofia onde mora ilação
    O amor que te guardo não perderás
    ame-me assim pelo simples amar
    Aqui vim somente para dizer:
    Jamais me esqueça meu bem querer!

  2. Saudade é uma palavra bonita para um sentimento horroroso, que dói contra o peito como uma costela quebrada. Ah, esses velhos tempos...

  3. Anônimo says:

    Lindo mesmo!

    ___________________________

    Saudade a gente cultiva nas lembranças retidas. Na cadência de um amor que se sustenta na ilusão do eterno ser o que se é, quando se esta. Então é preciso lembrar-se de não se esquecer de eternizar, pois o que vai ficar são lembranças que irão lembrar a saudade de adoçar o teu ser de prazeres que ficarão de tal jeito apenas no teu saudar.



    o ar da minha graça: JUNO

  4. Karen says:

    Amei esse lance de mundo bossa nova! E todo o resto. Thanks.

  5. Karen says:

    Amei esse lance de mundo bossa nova! E todo o resto. Thanks.