Casa Viva

Eu não sei viver sozinha. Há momentos em que preciso ficar sozinha, porém, tendo a certeza de que não estou só. Entende?
Agora você dorme ao meu lado sem se preocupar com a chuva que cai lá fora. "É domingo. Podemos passar o dia na cama fazendo amor." Você disse isso ontem à noite quando chegou. Mas agora você dorme, sem se preocupar se terá roupas limpas para trabalhar durante a semana.
Deslizo meus dedos bem de leve por tuas costas, escrevo meu nome nela e sinto que és meu desse jeito. Observo tuas costas subindo e descendo conforme tua respiração. Tento lembrar do dia em que nos conhecemos. Você usava camisa vermelha com uma estampa qualquer, jeans e coturnos. Cabelos negros, olhos negros e uma barba por fazer. Não lembro que roupa eu usava nesse dia, mas lembro até que você ouvia uma música do The Doors. Esperamos o ônibus juntos. Ninguém falou nada. Eu não conseguia tirar os olhos de você sem nem ao menos olhar. Consegue imaginar?
Não. Esse foi o dia em que eu te conheci. Só nos conhecemos quatro anos depois desse encontro em que acompanhei tua presença até o ônibus virar a esquina. Eu nunca me preocupei em dizer-te que já o conhecia quando nossos amigos nos apresentaram. Por alguns momentos, em nossos primeiros momentos juntos, cheguei a ver nos teus olhos que você se lembrava de nosso primeiro encontro. Mas depois sumiu dos seus olhos e esse passou a ser um momento só meu. Assim como sumiu dos teus olhos aquela veneração que eu sentia que tu tinhas por mim. Hoje só sobraram os desejos e a acomodação. Eles sempre ficam entre nós.
Brinco com teus cabelos, você detesta quando faço isso. Vira para o outro lado. Bem longe de mim. Há quase dez anos você desistiu de escrever. Adorava fazer críticas sobre os últimos filmes lançados. Eu era sua única leitora. "Ninguém lê o que escrevo, para quê escrever então?", você disse isso enquanto eu comentava sua crítica sobre algum filme de guerra que não lembro mais o nome. Eu era o seu Ninguém. Aproximo-me de ti, teu braço envolve minha cintura, te aconchego entre meus seios, você os beija e me chama de "amor". Era a única hora do dia em que você não me chamava pelo nome.
Começo a cantarolar baixinho: "I can give it up, for someone else's touch, because I care so much" e lembro uma vez, quando estava na rua de nosso apartamento te vi fumando um dos meus cigarros na pequena varandinha escondido atrás de alguns pensamentos. Você não suportava que eu fumasse. Então, ao entrar em casa, você vem até mim e me abraça, sem lágrima alguma, com cheiro de cigarro, sem falar nada. Sua barba arranha meu rosto e você não me deixa olhar em teus olhos. Dias depois descubro que seus pais morreram em um acidente, em um acidente em que você estava envolvido.
Olho para as paredes de nosso quarto. Riscadas com números, declarações de amor, declarações de raiva, desenhos dos filhos de nossos amigos ou dos próprios amigos. Tínhamos uma casa viva.
- Você está pensando alto de novo, amor. - Você fala e sinto seu hálito quente no meu pescoço. Tento disfarçar o susto de mais uma vez você ter escutado meus pensamentos.
- Desculpe, volte a dormir. Está cedo e chovendo.
- Nós temos uma casa viva.
- O que disse?
- Você disse que tínhamos uma casa viva. Eu te digo que temos.
Você voltou a dormir, eu voltei a desenhar nas suas costas. "Nós temos uma casa viva."

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8 Responses to Casa Viva

  1. Anônimo says:

    "Casa Viva".Muito bom de devorar.Tem rítimo

  2. joyce says:

    eu adoro te ler!!

  3. Marcus says:

    Depois de te procurar no orkut, facebook e uma tentativa tosca de pegar seu numero com seu primo, e tbm de ter escrito seu nome errado no google, por fim encontro teu blog.
    Que maravilha de texto!
    Vou devorar todos!

  4. Nara says:

    O seu texto foi a unica coisa que subiu um leve sorisso no canto da minha boca. Obrigada.

  5. SuperEgo says:

    Gostei, Tolstoi.
    ^^

  6. Nathy. says:

    Dos textos que eu li, meu preferido.

    Você, aqui (L).

  7. Lari says:

    Fantástico. Sem exagero algum.

  8. estive deitado com eles enquanto lia. Maravilhoso