Cartas e Chardonnay

Fim de tarde.
É sempre fim de tarde quando resolvo escrever. Você sabe. Eu gosto do contraste que o pôr do sol causa em tudo. E aqui, nessa casa, incrivelmente bate um silêncio danado esse horário. Talvez seja o vazio que você deixou, junto com essa pilha de cartas e as canecas sujas de café.
Amanhã vou me mudar. Não posso te dizer pra onde, isso iria dar-me esperanças de você aparecer por lá. Mesmo eu sabendo que jamais voltaríamos a estar juntos novamente.
Então, daqui alguns dias faz um ano que você foi embora.
No dia que nos encontramos, foi o dia que você foi embora. Eu percebi isso no teu olhar. Percebi tua sombra gigante de desconfiança que sempre se perguntava porque ainda continuava ali comigo. Eu ouvia tua respiração toda noite, sempre cautelosa. Eu te via a observar-me quando achava que eu estava dormindo. Te via dando a volta na chave duas vezes sempre que ia tomar banho. Te ouvia orando no banheiro para que eu fosse embora. Mas nunca me perguntei os motivos. Eu só queria tua presença, teus abraços, teu riso, tua voz. Só queria tua presença comigo, mesmo que ali fosse apenas teu corpo. Mesmo que só conseguisse tua presença depois de algumas taças de Chardonnay.
Provavelmente no fundo eu saiba todos os motivos que te levaram a ser assim a partir do momento que passamos a andar juntos. Mas eu penso sempre em tanta coisa. Poderia até culpar-me por algo que te pertence. Por isso deixo de pensar. Ponho-me a ler nossas cartas.
O que dizer delas?
Eram vivas.
O que dizer de nós?
Nunca existiu.
Hoje vejo que é tão simples ver isso. Vou lendo e rasgando. Lendo e tentando sentir o que sentia ao escrevê-las, ao lê-las. Vou pegando-as da pilha e tentando sentir a mesma emoção que senti ao pegá-las na caixa do correio, ao achá-las dentro dos meus livros, nas gavetas de meias, no lugar do jantar, dentro dos meus sapatos, entre os lençóis, no bule de café, na porta da geladeira, no porta-luvas do carro da sua mãe, na minha carteira, no meu paletó. Vou lendo e não sentindo nada. Ao menos nada que me faça te desejar o bom e o certo. Ao menos nada que não machuque ninguém. Algo que só pertence a mim mesmo.
Mas fique tranquila, permaneço no 'nada'. Ele é saudável para nós dois. 'Nada'. Esta aí uma coisa que posso dizer ser nosso. O 'nada'. Não temos 'nada'. Nunca tivemos. Desejo-te nada. Um dia, talvez eu acredite em tudo que digo nesta carta. Um dia, talvez acredite em todo esse 'nada'.
Todos os móveis já devem estar chegando ao meu novo lar. Qualquer casebre que não me lembre nada de ti. Mas vai ser impossível. Conseguimos em um ano construir uma casa juntos. Uma casa fundamentada no 'nada'. E dessa casa você não levou nada. Você apenas se foi.
Eu sei que deveria ter mandado tudo o que era teu pelo correio, mas tudo que era teu nesta casa, também me pertencia. Como eu poderia enviar-te? Se quer deixastes um bilhete com seu novo endereço. Se quer deixastes algo escrito avisando que iria embora.
Não posso dizer que tudo foi de repente. Afinal, você foi embora desde o primeiro dia. Eu podia sentir e não podia fazer nada.
Eu menti. Não rasguei tuas cartas. Só as minhas. Elas soam muito falsas perto do que sinto hoje. E de poquinho em pouquinho vou me apagando de ti, rasgando minhas cartas, deletando meus recados, apagando minhas fotos. E no fim, só sobrarão cartas, cafés e um tênis velho onde você rabiscou: "We are just wasting our time, you know".

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5 Responses to Cartas e Chardonnay

  1. Sacha Mona says:

    Acho que isso cabe tanto em mim que eu poderia te chamar de mãe Diná.

    Lindo Cah, como sempre.

    Amo você

  2. Sua escrita parece honesta de novo. Como não parecia quando você estava aqui. Tento desvincular entrelinhas, mas não seria eu se conseguisse. Gostei do texto, Abgail.

  3. Ana says:

    Incrivelmente viciante. Não tenho nada a dizer além disso hahaha

  4. Nathy. says:

    Ba-ban-do.

  5. Maira. says:

    Acho o seu melhor texto. Há tempos, na verdade. Sempre venho aqui e o releio. É lindo, lindo.
    Gosto de reler também "Abelha No Café" do seu outro blog.