Todos Estão Surdos

A maior parte da casa estava escura. Alguns fumavam na varanda, outros estavam espalhados pelo quarto e alguns abandonados na cozinha. Todos um pouco bêbados, um pouco cansados e um tanto exaltados. Fazia quase um ano que não se juntavam para fazer algo. As conversas desconexas cansavam todos, mas sair dalí parecia não ser uma boa opção aquela hora. E nem era tão tarde assim. Você podia respirar e sentiria a tensão que a casa carregava. E se fosse bem esperto, ficaria longe dela. Era o fim das férias, o fim do inverno seco, o fim de Janeiro, o fim de algumas amizades.
Jaya cansada de ouvir as mesmas histórias, usou a desculpa de que precisava fumar para sair do quarto, para fugir de todos aqueles risos mascarados pelo álcool. Há alguns anos, era diferente. Todos desejavam a presença um do outro, era uma sede que só aquele grupo poderia suprir, eram os problemas que só aquele grupo entenderia as queixas e teria soluções. Mas hoje os problemas só aumentaram, e nem o álcool consegue mantê-los no mesmo lugar. Alguns desejavam poder se duplicar para que de algum modo ter a noção de união que outrora existira.
O único faixo de luz que vinha era do quarto. Jaya caminhava com cuidado mesmo a sala não tendo nenhum móvel. Os risos vinham do quarto, da varanda, da cozinha... Tão forçados e ridículos que nem para atores aqueles que ali estavam serviam. Mais um pouco a frente, um vulto movia-se na escada. Alguem que como ela, parecia não suportar estar no quarto ou na varanda.
- Oh, é você Lola. Tá sentindo algo?
- Não, nada. Só quero ficar quieta aqui.
- Ah, ok. Vou ficar quietinha aqui, tá bom? - Jaya falou sentando-se na escada também. Colocou os pés no vão e ficou balançando-os. Não ousava olhar para baixo. Estava muito escuro e sua imaginação só precisava de um vulto para começar a criar outro mundo. Fechou os olhos e pôs a escutar a respiração de Lola. Era pesada como de todos os outros na casa.
Elas duas nunca foram de conversar muito. Não por haver tantas diferenças, mas por falta de oportunidade. Jaya conversava com todos, mas era reservada. Ambas eram reservadas. Jaya fumava, era mais velha, mais indecisa e era boa ouvinte. Lola cantava, era a caçula, perfeccionista e achava Jaya a pessoa mais estranha que conhecera.
- Faz muito tempo que não sinto nada. - Começou Lola. Respirava bem lento, procurava as palavras certas para descrever como se sentia. Mas o que ela não sabia, é que palavras certas nunca existem. Palavras são apenas palavras e por mais que você as escolha, um bom ouvinte sempre saberá do que realmente se trata. - Faz muito tempo que todo começo de ano eu acho que vou fazer tudo direito, que vou encontrar um bom namorado e que vai durar. Mas nada disso acontece. Faz tanto tempo que eu já não espero mais nada desse ano. Eu não entendo, todos tem seus namorados, namoradas, empregos promissores, um carro, uma casa e eu ainda nem saí da casa dos meus pais.
- Eu também moro com meus pais, é bom. Morar sozinha tem lá suas vantagens, mas apesar de muitas reclamações, eu prefiro morar com meus pais. Também não tenho namorado, mas bom, não tem me feito falta.
- Jaya, você tem seus casos.
- Casos e acasos, Lola. Mas o assunto aqui é você. Continue falando. Você vai encontrar a resposta.
- Eu tranquei a faculdade.
- Bem-vinda, tranquei 3.
- Ainda sou virgem.
- Isso é algo que a sociedade impõe. Você realmente não devia se preocupar com isso. Exceto se seus hormônios pedirem.
Elas riram. O ar já estava mais leve. Os risos nos outros cômodos haviam diminuído. Jaya sentiu vontade de fumar um cigarro, mas sabia que Lola esperava que ela a escutasse mais um pouco. Pigarreou alto como que incentivasse Lola a continuar a falar.
- Não sei realmente o que quero fazer da vida.
- Ah, minha cara... Não vai ser eu quem vai te dizer o que fazer. Comece pelo seu quarto, pela sua casa, pelo seus pais. De algum modo os planos irão surgir. Siga seu próprio tempo, mas por favor, que ele não seja lento demais. O mundo não espera pela gente. Temos sempre que correr atrás dele, atrás de tudo. Não fique sentada apenas olhando a escada. Prepare outro martine e brinde a vida que tens. Busque sempre valorizar o que tens e quem tens por perto. A gente anda meio degastado em termos de valorizar algo, mas temos um ano pela frente para fazer diferente. Não acha?
- Acho que você deveria largar Letras e fazer Psicologia.
- Não mesmo! - Jaya retrucou rindo. - Sua melhor amiga, que cursa Psicologia, está bêbada lá dentro e se quer notou sua ausência.
- Você notou a minha?
- Achei que estava lá na varanda com os outros.
- Então não notou.
- Entenda como quiser.
Jaya levantou e começou a descer as escadas. Não podia mais adiar o cigarro e já havia escutado Lola mais do que o necessário. Estavam bêbadas, não lembrariam de nada do que falaram no dia seguinte. As pessoas do quarto saíram, arrastaram Lola de volta. Jaya foi para os fundos da casa fumar seu cigarro. Precisava do seu tempo quieta. A noite ainda estava longe de acabar e ir pra casa não era uma boa opção. Fumava um cigarro atrás do outro. Janeiro passara tão rápido e ela ainda estava desempregada. A única luz que havia onde ela estava era da brasa do cigarro. Há alguns anos que a brasa do cigarro era sua única luz. Alguem se aproximava aos tropeços em sua direção.
- Oh, Jaya, é você. Tá bem?
E quando Jaya ia responder, a mulher vomitou bem perto dos seus pés. Jaya largou o cigarro e foi ajudar Gisele, que provavelmente estava entrando em seu trigésimo coma alcoolico em menos de dois meses.
Jaya nunca tivera a sorte de encontrar um bom ouvinte. Todos estão surdos e ninguém nota. Todas as notas ecoam nas paredes e as almas estão trancadas num poço sem luz, sem água e com pouco ar.

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1 Response to Todos Estão Surdos

  1. Juliana says:

    Nem todos estão surdos. Mas a maioria não está afim de ouvir.

    Não sei se é bom procurar ouvinte. Ouvinte que é bom, aparece do nada.